Proposta de Guedes privilegia setor privado ao deixar de direcionar recursos às escolas – e obrigá-las à lógica da concorrência. Mais abastados poderão usar ticket para complementar mensalidade. Aos pobres, sobrará um ensino ainda mais deteriorado
OUTRASMÍDIAS
DIREITOS OU PRIVILÉGIOS?
por EPSJV/Fiocruz
Publicado 05/02/2020 às 12:51 - Atualizado 05/02/2020 às 12:52
Roberto Leher, em entrevista à Beatriz Mota EPSJV/Fiocruz
Enquanto o ministro da educação Abraham Weintraub tenta sobreviver a uma
crise gerada pelas falhas de correção no Enem, vem de fora da pasta (e do país)
o anúncio que pode impactar fortemente o futuro da educação no Brasil. No Fórum
Econômico Mundial, em Davos, o ministro da Economia Paulo Guedes afirmou que
haverá um “gigantesco” programa de distribuição de vouchers para a educação
infantil. A ideia é que os cupons – que funcionam como uma espécie de cheque –
sejam entregues diretamente às famílias das crianças, para que elas possam
escolher “livremente” onde aplicar esses recursos: em mensalidades de creches e
escolas privadas ou públicas.
Guedes apresentou a medida como parte da estratégia do governo federal
pela diminuição da desigualdade social, quando, entretanto, as maiores críticas
a este modelo residem justamente no aprofundamento das disparidades entre
oportunidades educacionais. A experiência em maior escala da proposta aconteceu
no Chile, a partir de 1980, implantada por economistas liberais discípulos da
mesma corrente de pensamento que o ministro brasileiro, a Universidade de Chicago.
Um relatório publicado em 2018 pela Universidade do Colorado apontou os efeitos
nocivos da política de vouchers no país latinoamericano: as escolas públicas
das regiões mais pobres passaram a ter que concorrer pelos recursos públicos
com as instituições privadas e com as públicas mais bem localizadas e,
portanto, com melhores resultados. Dessa forma, o estrato mais rico da
população continuou tendo acesso às melhores escolas, enquanto as pessoas com
menos renda ficaram reféns de instituições cada vez mais precárias.
Para entender melhor as possíveis consequências da adoção dos vouchers
no Brasil, o Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou Roberto Leher, pesquisador da
área de educação e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Leher é enfático em suas críticas e prevê a instalação de um modelo perverso
que geraria um “apartheid educacional” no país, penalizando setores mais
pobres, explorados e expropriados da sociedade. “Muitos objetivos políticos
estão convergindo para a política de vouchers, por isso entendo que este é um
dos acontecimentos mais graves do governo Bolsonaro”, afirma Leher.
O pesquisador articula a medida com outras políticas e propostas em
curso no país, que, segundo ele, têm como objetivo “enterrar a Constituição de
88”, alerta para um futuro de professores “uberizados”, com jovens formados
como força de trabalho degradada, e ainda refuta a ideia de liberdade de
escolha para as famílias de estudantes: “É uma falsa escolha. As famílias
estarão escolhendo qual é a escola menos precária que eles terão acesso com
seus vouchers. As desigualdades gerais das sociedades só vão aumentar”. Leia a
entrevista:
A fala do ministro Paulo Guedes no Fórum Econômico Mundial, semana
passada, veio a partir de um questionamento a respeito da agenda do Brasil
relacionada à diminuição da desigualdade social. Sabemos que políticas de
acesso à educação são essenciais para transformação desta realidade, mas é na
distribuição de vouchers que a discussão deveria estar centrada, na sua
opinião?
No Brasil, nós sabemos que o processo de implementação de vouchers tende
a aumentar muito a desigualdade da oferta de educação, sobretudo penalizando
setores mais pobres, explorados e expropriados da sociedade. É importante
destacar que o modelo que Guedes seguramente reivindica é o modelo original do
Chile. Nesse modelo, as famílias, ao receberem vouchers, podiam fazer opções
entre as escolas públicas e as escolas privadas. As escolas públicas das
periferias não têm outra receita senão os próprios vouchers. A população pobre
não pode desembolsar recursos e fins próprios para complementar o valor da
mensalidade, enquanto as famílias de setores mais favorecidos, das classes
médias e altas, utilizavam o voucher como uma parte do pagamento.
E o que esta política ocasionou socialmente no Chile?
As marchas dos estudantes, em 2006, pelo movimento Pinguim [os
estudantes chilenos foram apelidados assim por se vestirem de terno e gravata],
demonstraram de maneira muito contundente que as escolas financiadas
exclusivamente pelos vouchers eram muito degradadas, porque o valor não
assegura o custeio básico adequado para elas. Então, na realidade, nós tivemos
o pior cenário possível. Ou seja, de um lado as escolas voltadas para os
setores mais pauperizados, mantidas pelos vouchers, em condições cada vez mais
precárias. E, de outra parte, os setores das classes médias, os setores
dominantes, em geral, com recursos muito mais relevantes, porque o voucher era
apenas uma parte do pagamento da mensalidade. As famílias complementavam com recursos
próprios as mensalidades.
As escolas privadas do Chile, por sua vez, fazem seleção dos estudantes,
ou seja, já há uma seleção prévia, o que mascara os resultados educacionais.
Essas instituições privadas que recebem voucher, além de terem um montante de
recursos muito maior (voucher + mensalidade), são escolas seletivas. Com isso,
nós tivemos, no caso chileno, um modelo extremamente perverso, que está na base
da Revolta dos Pinguins e que chegou a mobilizar 20% da população do Chile –
algo único na história das lutas pela educação pública. É uma mobilização que
está na base do atual levante social que ainda está em curso no Chile. Diversas
desigualdades permaneceram e isso é percebido hoje, pela população, como uma
política nefasta.
Apesar da experiência mais próxima do Chile, em Davos o ministro apontou
os investimentos em educação no Japão e na Coreia do Sul como inspirações.
Podemos comparar a realidade educacional desses países com a do Brasil?
Países como Japão e Coréia estão em forte decréscimo populacional. O
Japão é, hoje, um país em que a população e a unidade escolar estão encolhendo
de forma muito acentuada. A opção do Japão foi não abrir o país aos imigrantes,
e portanto eles têm um sistema educacional bastante homogêneo. A desigualdade social
prévia, que é o grande problema dos vouchers, não existe por lá.
Mas mesmo países que utilizaram voucher e que têm igualdade social muito
mais relevante do que a brasileira, como é o caso, por exemplo, da Suécia, não
tiveram bons resultados. O próprio Ministério da Educação da Suécia disse ter
sido uma má experiência, porque aumentou a desigualdade educacional. No caso da
Suécia, isso ocorreu especialmente porque existe população imigrante. O voucher
é uma política de indução, de diferenciação e competição interna das escolas.
O argumento da concorrência vem de um dos maiores defensores do voucher,
Milton Friedman (1912-2006), prêmio Nobel de Economia e professor da
Universidade de Chicago, da qual Guedes e os economistas liberais do Chile
foram alunos… Após a ideia ter sido posta em prática e fracassado em países de
realidades diferentes, já se pode dizer que esse é um argumento falho?
Sim, acredita-se que o benefício que o voucher traz é: quanto maior a
competição, quanto mais concorrerem entre si pelos recursos, melhor as escolas
vão se estruturar, vão investir na sua capacitação, etc. O que não se verifica
no mundo real.
Na realidade, a escola pública é algo que – nas revoluções liberais,
desde a Revolução Francesa, a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, a Revolução
Americana – sempre esteve associada a uma ideia do que uma nação gostaria de
compartilhar com todo povo. A população tem muita mobilidade e há conhecimentos
que devem ser de apropriação universal. Isso gera uma perspectiva de escola
pública referenciada, um conceito complexo, que é a noção de cidadania. Ou
seja, a escola assegura condições, ou deveria assegurar, para o exercício da
cidadania, uma perspectiva muito mais ampla do que a formação de capital
humano.
Hayek [Friederich Hayek, da Escola Austríaca de pensamento econômico],
quando defende a utilização de mecanismos de mercado na educação básica, está,
justamente, voltando-se contra a perspectiva da cidadania. Nesse caso, ele é
mais radical do que o próprio Friedman, pois o que vale é os indivíduos
competirem entre si. Portanto, a lógica neoliberal da educação é,
essencialmente, uma lógica individualista. São os indivíduos que fazem escolhas
no mercado, com seus vouchers, e a partir dessas escolhas os indivíduos mais
empreendedores, mais agressivos, com maior capacidade de competição, irão optar
pelas escolas que valorizam essa sua qualidade, de ser um indivíduo mais
competitivo, de maior capacidade de se sobrepor aos outros no mercado. Isso
desestrutura o sistema de educação, é uma política que inviabiliza qualquer
horizonte de elevação geral da cultura, enfim, do conjunto da população. É o
fim da experiência que se consolidou no século 19 de que a educação pública é
um dever do Estado.
O que a política de vouchers indica, no Brasil, em relação ao
entendimento da construção de cidadania e direitos sociais associados à
educação pública e garantidos hoje pela Constituição?
A proposta é coerente com a política mais geral que está em curso no
Brasil, expressa pelo próprio Guedes, de que a Constituição de 1988 tem que ser
enterrada. Ou seja, não é mais possível, no padrão de acumulação no capital de
hoje, o país ter uma constituição com os conceitos, princípios e diretrizes que
estão presentes na Constituição de 1988. Os conceitos de Seguridade Social, de
Saúde e de Educação, além de outras questões relativas ao uso social da terra,
à proteção dos territórios indígenas… Enfim, tudo isso, na perspectiva de poder
que hoje conduz a política econômica – representada pelo Guedes – coloca como
estratégico o fim da Constituição de 1988.
O voucher é um subterfúgio para quebrar a centralidade da luta que os
educadores e os setores democráticos têm relação à construção de um Sistema
Nacional de Educação. Um sistema que é diverso, mas com princípios orientadores,
valores comuns sobre o direito ao conhecimento, sobre a liberdade de cátedra,
sobre a possibilidade de transformar cada escola no espaço que tenha a vibração
da vida. Uma escola que seja pujante, que seja criadora, na qual as crianças se
apaixonem pela ciência, pela cultura.
É isto que está em jogo, porque com os vouchers, não há perspectiva de
ter alguma coisa comum no país. Ao contrário. Nós vamos ter as disparidades
regionais e, dentro de cada região, as disparidades locais muito exarcebadas,
naturalizando um apartheid educacional. Ou seja, nós vamos ter verdadeiros
‘bantustões’ [regiões criadas pelo regime do apartheid na África do Sul para
manter os negros fora dos bairros de brancos], em que as crianças e os jovens
ficarão com escolas de pobres, enquanto que os setores mais favorecidos podem
se valer do seu voucher, para ser apenas uma complementação das suas
mensalidades.
A quais interesses políticos, econômicos e ideológicos o uso de vouchers
atende?
Os vouchers são uma forma de viabilizar a mudança estrutural na
educação, a partir de uma conjunção de interesses extremamente poderosa:
primeiro, da pequena política municipal, já que as escolas de Educação Básica
são essencialmente escolas municipais e estaduais. A rede federal é uma ínfima
perto do conjunto. Assim, o prefeito e o governador poderão operar
politicamente por meio dos vouchers, como se fosse um favor de partido, da
corrente política, de estar lá garantindo para aquela família o seu direito.
Segundo, contemplam o interesse das grandes corporações de educação,
que, com a crise do Fies, estão buscando novos nichos de mercado. Eu me refiro
aqui às empresas que tem capital na Bolsa, que são grandes corporações
educacionais. A existência de vouchers seria a alavancagem do setor privado e
mercantil. E os vouchers criariam condições de segmentar mais, como já estão
segmentando, as escolas para tipos de estudantes diferentes. Essa é a essência
dessa política. Ou seja, vai haver um tipo de escola para os pobres e um tipo
de escola para alunos com tíquetes acima de R$ 2 mil, R$ 3 mil reais. Na
educação básica, esse é um outro público, que serve para as corporações.
Em outra parte, atende também aos setores fundamentalistas, que apoiam o
governo no parlamento. A bancada evangélica tem muito interesse nos vouchers,
porque isso permitiria que eles elevassem o seu aparato educativo associado à
sua religiosidade. É, justamente, o encontro de fundamentalismos, porque
contempla tanto os adeptos do livre mercado selvagem, radical, como também aos
fundamentalistas religiosos.
Movimentos como o Escola Sem Partido são contemplados por esta política?
O voucher é um instrumento para permitir que a educação pública seja
alforriada do Estado e deslocada para a esfera do mercado. É seguro que muitos
objetivos políticos estão convergindo para a política de vouchers, por isso que
eu entendo que este é um dos acontecimentos mais graves do governo Bolsonaro.
Com isso, teremos a supremacia das construções religiosas e das grandes
corporações, que estão segmentando o mercado, mas também objetivos políticos
que estavam subjacentes à Escola Sem Partido e outros movimentos.
Futuramente teremos consequências muito graves para o afastamento do
Brasil da ciência contemporânea. Porque, com essa política perseverando, o país
vai ficar em desconexão com a ciência do século 21, que busca perspectivas
interdisciplinares. Temos muitos problemas estruturais neste século: com as
consequências de mudanças climáticas, de problemas futuros com recursos
hídricos, da proliferação de doenças, de arboviroses, o caso da China agora… E
a ciência deve ser um acervo, deve ser um direito, deve ser um patrimônio da
humanidade, para se poder pensar e transformar o mundo, para que nós não
caiamos na completa barbárie.
Nós estamos em um ambiente muito estranho, em que prevalece a chamada
pós-verdade. Não há compromisso ético com a verdade. Há uma ofensiva contra um
conceito de ciência como patrimônio da humanidade, da validade dos
conhecimentos científicos, que obviamente sempre estão abertos a
problematizações, questionamentos… Mas existem formas de validação do
conhecimento científico que possibilitam que ele tenha um rigor, e seja
explicativo da natureza, da sociedade, do mundo real. Tudo isso está sendo pasteurizado
na perspectiva de que a ciência é apenas mais um discurso, ela é uma ficção
verbal, então não há compromisso de coerência no discurso e os fatos do mundo
real. Vimos isso em diversos momentos, nas questões relativas ao desmatamento
na Amazônia, das queimadas, do aumento do trabalho precário, no Brasil, com o
IBGE, enfim, diversos momentos. Infelizmente nós estamos encontrando esse tipo
de formulação.
Após anunciar a política de vouchers, Guedes atribuiu a desigualdade
brasileira a dois aspectos: o acesso à educação e aos altos impostos no
trabalho. De que maneira a medida educacional apresentada está articulada
especificamente com a política trabalhista em curso no Brasil?
É evidente que uma escola que se mantém por meio de voucher é uma escola
que tem que perseguir de maneira mais radical possível a redução de custos.
Daí, virão professores ‘uberizados’, não sindicalizados… Essa é uma experiência
que aconteceu nos Estados Unidos, com muitas greves para lutar contra o
cerceamento de ingresso de professores sindicalizados. O fato de o professor
ter se sindicalizado em algum momento pode ser um fator impeditivo para que ele
possa ter um emprego na escola mantida pelos vouchers.
O Brasil, infelizmente, está sendo pensado a partir da reforma
trabalhista, da reforma da Previdência, e de todas as formas de
hiperterceirização, inclusive das atividades fins, como o paraíso do trabalho
simples, e não do trabalho complexo. Então, é também um horizonte para formação
humana, da maior parte da juventude brasileira, como força de trabalho
degradada, simples, expropriada. Recente estudo mostra que, de fato, o Brasil
não cria empregos, hoje, acima de dois salários mínimos. Nós estamos nos
convertendo num grande bolsão de força de trabalho superexplorada.
Mas um dos argumentos da utilização dos vouchers é relacionado
justamente à liberdade das famílias na escolha do melhor ensino para o futuro
de seus filhos…
O tema da liberdade de ensino foi um grande tema que polarizou as
discussões sobre a Lei de Diretrizes e Bases, em 1961, que anunciava que
setores da sociedade civil estavam conspirando abertamente contra a democracia,
o que acabou se confirmando com o Golpe de 1964. O discurso de hoje tem
semelhanças com aquele de 1961, porque a perspectiva era de que a escola pública
seria uma escola que iria doutrinar, padronizar a formação da juventude, e isso
feriria o direito das famílias de assegurar a melhor educação aos seus filhos.
Esse é um discurso que é retomado, nos dias de hoje, e que tem a ver com
o momento de expansão política da bancada evangélica e também com um projeto de
poder que está em curso, que é incompatível com a existência de perspectivas de
cidadania, de direito social, de direito humano e de um pensamento crítico.
Tudo isto, hoje, infelizmente, afirma-se como um projeto em que os setores
econômicos e os setores fundamentalistas estão caminhando de mãos dadas.
Qual seria a fundamentação do direito de escolha? A família com um
cheque vai poder fazer a escolha que for mais adequada para os seus anseios, e
para suas perspectivas, para os seus horizontes de vida? Em primeiro lugar, é
importante destacar que as famílias provenientes dos setores mais explorados,
expropriados, que moram nas favelas, nos territórios de maior pobreza, terão
que forçosamente fazer escolhas com escolas diferenciadas daquelas dos setores
mais favorecidos da sociedade. Elas terão que se contentar com escolas em seus
próprios territórios: a mobilidade social na cidade não comporta o deslocamento
de milhões de crianças em busca de escolas “de maior prestígio”. Até porque
essas escolas não têm vaga e, sobretudo, as privadas fazem seleção.
É uma falsa escolha. Elas terão que escolher, na realidade, escolas do
seu próprio contexto, e que rigorosamente não se mantém com os vouchers. Nessas
escolas, os vouchers são a maneira de empurrar para baixo o gasto educacional.
Isso é dito como um gasto mais eficiente, o que vai ser um menor gasto, porque
terá menos recursos. Os professores não têm carreira, não têm reconhecimento da
sua qualificação, quando fazem especialização, mestrado e doutorado, porque as
escolas não têm atividades mais diversificadas, como oficinas de leitura e
atividades vinculadas à arte, à cultura, laboratórios de ciência. As
instituições terão que enxugar muito os seus gastos.
Então, as famílias estarão escolhendo qual é a escola menos precária que
eles terão acesso com seus vouchers. As desigualdades gerais das sociedades só
vão aumentar. Porque a escola pública é mais democrática que a sociedade. Se
nós olharmos o perfil social dos estudantes que estão chegando à universidade
pública, ele é muito mais democrático do que a sociedade. Ou seja, se pegarmos
os 40% mais pobres e, sobretudo, 20% mais pobres da população brasileira, há
uma participação percentual maior na universidade pública do que eles têm em
relação a outras dimensões sociais, em relação a salário, em relação à moradia,
em relação às condições de habitação, saneamento. A escola pública tem uma
composição mais democrática do que a estrutura da sociedade. Isso é uma herança
positiva e muito relevante, da própria perspectiva Iluminista, que vem da
Revolução Francesa, e que, de certa forma, orienta grande parte dos debates
sobre a escola pública do século 19 e início do século 20.
O anúncio da política de vouchers se articula com o adiamento da
discussão e renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização de Profissionais da Educação (Fundeb) – principal fonte
de financiamento da educação básica pública no Brasil, que tem vigência apenas até
2020? É possível pensar financiamento da Educação, hoje, sem abordar o Custo
Aluno-Qualidade (CAQ), previsto pelo Plano Nacional de Educação e ainda não
implementado?
Os vouchers são uma forma do governo federal estruturar um aparato
político, em todo país, em que a autonomia relativa dos municípios e dos
estados vai ser desconsiderada. O Fundeb, com todos os seus imensos limites,
estabeleceu parâmetros que reduziram as disparidades regionais. Mas o Fundeb
não avançou na redução das desigualdades, justamente porque o Custo
Aluno-Qualidade de hoje não permite uma elevação do orçamento e da qualidade da
educação pública.
Nós temos que lembrar que foi aprovada uma lei [do Plano Nacional de
Educação], que tem seus problemas, mas que determinou que o país alcançasse, em
10 anos, 10% do PIB. Hoje, o país gasta 5% do PIB, e, portanto, o tema do
Fundeb é sobre como vamos chegar, em última instância, nos 10% do PIB. Para
elevar os gastos da educação com resultados efetivos, um gasto racional, que
efetive melhoria da escola pública, precisamos implementar o CAQ. Assim, nós
podemos ter uma mirada para escola pública não apenas como uma escola de pobre,
para pobre, mas como uma instituição da nação. Uma instituição estratégica, que
assegura direitos, e nós precisamos muito assegurar esses direitos da
juventude.
Uma escola pública, hoje, é necessariamente uma instituição muito
complexa, porque a ciência, a tecnologia, a cultura, a arte, as linguagens, se
complexificaram enormemente. Então, nós precisamos de escolas públicas com
infraestrutura de bibliotecas, para esportes, para área de cultura e de artes,
para área da ciência, salas e laboratórios de ensino. Sobretudo, nós precisamos
assegurar uma assistência estudantil que proteja as crianças provenientes dos
setores mais expropriados, frente à pressão econômica, para que elas possam se
manter na escola.
Então, precisamos elevar os gastos com a educação. Hoje, nas condições
que temos no país, sobretudo, pensando a curto e médio prazos, nós precisamos
de um mecanismo que corrija essas desigualdades, essas disparidades regionais.
E o Fundeb, lastreado no Custo Aluno-Qualidade, pode ser uma ferramenta muito
importante para isso.
É importante destacar que a União aporta, aproximadamente, somente 10%
dos recursos do Fundeb, e o resto fica por conta dos estados e municípios. De
5% do PIB que o país gasta com toda educação – da educação infantil à graduação
das universidades públicas – aproximadamente, 3,85% vêm dos estados e
municípios. A União só comparece com 1,2% do PIB.
https://outraspalavras.net/outrasmidias/vouchers-na-educacao-o-desmonte-do-ensino-publico/